Carta #o19 - Que ano, hein? Capitão, estamos em maio.
Sobre primavera, apagões, perdizes, casamentos, noites de poesia e o muro do cotidiano
W.,
Não sei bem o dia exato, mas a primavera chegou. Pra mim, é sempre de repente. O que sei é que faz dois dias guardei as blusas de lã e os casacos pesados na parte alta do guarda-roupa, e baixei as regatas e os shorts. Os dias amanhecem castanhos, asfalto úmido, sinais de uma chuva que não se ouviu, passou silenciosa durante a madrugada; o sol evem chegando, dissipando as nuvens cinza, as cores vão se estabelecendo. Nos balcões do prédio em frente as flores vibram em tons rosáceos, rubros, cataventos se agitam, há uma brisa constante. A perdiz que passou semanas sentada em seu ninho desapareceu do dia pra noite. Uma pombinha aproveitou o ninho pronto e se sentou sobre o ovo abandonado, porém logo desistiu, também. Da sacada vemos o ovo ao relento, a promessa não cumprida de uma vida, uma pérola gigante em meio aos gravetos. Da janela são essas as notícias que me alcançam, e quisera que fossem as únicas.
Esta semana começou com um apagão. Curioso pensar como o evento se desdobrou para mim. Estava tocando teclado e no meio de uma estrofe o instrumento se apagou. M. estava cozinhando, pensei que o disjuntor havia caído, como às vezes acontece, pela combinação forno, fogão e coifa. Corri ao quadro de luz e constatei que os disjuntores não se haviam desarmado. Atentei pelo olho mágico ao corredor do prédio, notei a ausência da luz de emergência. Abri a porta e vi que o elevador estava desligado. “Caiu a luz do prédio”, pensei. Corri à sacada e vi que o semáforo da esquina também estava apagado. “Caiu a luz do quarteirão.”. Agarrei meu binóculo, apontei para o outro lado, e vi que o semáforo da rua do mercado também estava apagado. Nossa rua estava em obras, estão recapeando o asfalto. “Acertaram um transformador com o caminhão”, pensei. “Acabou a energia do bairro”. Em meu celular chegou uma mensagem: era G., que trabalha comigo na Amazon, perguntando se também estávamos sem luz por aqui. Ela mora em outra Comunidade Autônoma. “Que coincidência estranha, acabar a luz assim, em duas cidades tão distantes!”. No mesmo grupo, avisaram que o norte da Espanha também estava no escuro. M. e eu decidimos ir à praia, então, já que estava sol (o primeiro dia livre de sol que tive), e não havia o que fazer. A caminho da praia, eu buscava por notícias no celular. Logo soube que o apagão havia afetado não só toda a Espanha, como também Portugal e parte da França. Sentia vibrar no ar a inquietude geral. Uma sensação de insegurança me arrebatou. Pensei em 2020. Na COVID 19, em como as notícias também chegavam às prestações, como de um dia para o outro apareceram ofertas de máscaras reutilizáveis, álcool em gel, as notícias falsas. Estaríamos à beira de viver tudo aquilo de novo? A praia estava vazia, como é de costume às segundas-feiras à tarde. Mas o silêncio dos trens que não passavam não nos deixava esquecer a impressão de que aquele era um dia raro. Pensamos nas pessoas que estavam em trânsito, de trem ou metrô, presas nos túneis em Barcelona. O que faríamos se a energia não voltasse? Tudo em nossa casa é elétrico, fogão, forno, geladeira, até o aquecimento da água não funciona sem eletricidade, apesar de ser a gás. Como vamos cozinhar? Os celulares estavam em 50% de bateria, o sinal de internet foi interrompido totalmente. Estaríamos isolados. O tempo começou a fechar, resolvemos voltar pra casa. Na entrada da praia, um homem estava deitado na areia ao lado de seu carro, que estava com o rádio ligado e as portas abertas. Notícias. Rádio. Corremos pra casa e ligamos o rádio no celular. Abri o guarda-roupa, fucei entre as coisas da proprietária, encontrei um rádio a pilha. Mas as pilhas eram do tipo gorda, e não tínhamos esse tipo de pilha em casa. Nos resignamos a ouvir um pouco com o celular. Calhou de ouvirmos a fala do presidente justo naquele momento. Não se sabiam as causas, toda Espanha afetada, transporte ferroviário gravemente afetado. Olhamos pela janela, as pessoas voltavam do mercado com sacolas cheias de água e provisões enlatadas. Resolvemos fazer o mesmo, não tínhamos o que comer, se não era possível cozinhar. No mercado, o cenário caótico da pandemia se reproduzia: prateleiras esgotadas, todo o papel higiênico, quase todas as conservas e enlatados. Apanhamos alguma coisa, para durar pelo menos três dias. Eu não tinha esperança de ver a energia voltar antes disso. Voltamos para casa, acendemos as velas que tínhamos, sentamos perto da janela para aproveitar a luz do sol poente, e jogamos uma partida de tranca. O sol se foi. Pessoas caminhavam na rua com lanternas. Os bêbados gritavam. Surgiram as estrelas. Pensei que seria uma noite de perigos, saques, violência. Pensei nas pessoas ainda presas nos metrôs, nos trens. Olhei para fora, na direção de Barcelona, e vi que havia luz em vários pontos da cidade. Voltei à sala de estar, sentei no sofá e, alguns minutos depois, escutei as pessoas gritando na rua. A energia voltara. Eram 22h30.

Na sexta-feira, na semana antes do apagão, nos casamos, M. e eu. Foi uma oficialização formal, já que vivemos juntos há 6 anos (apesar dos anos vivendo separados, por conta da migração). Nos casamos na sala João Cabral de Melo Neto, do Consulado do Brasil em Barcelona. O poeta foi vice-cônsul e depois cônsul em Barcelona, na década de 1970. Celebramos com nossos amigos em um restaurante brasileiro, com feijoada, caipirinha, torresmo… Os amigos nos surpreenderam com uma decoração festiva, um bolo, e um presente de casamento. Foi um dia lindo, nos sentimos muito amados, acolhidos, queridos. Regalamos copinhos de shot com nossos nomes e a data, e levamos docinhos que havíamos enrolado na noite anterior. Foi precioso ver as pessoas reunidas, de grupos diferentes, interagindo, rindo, conversando, em nome dessa nossa união que começou tão despretensiosa há 6 anos. Me emociona pensar nos amigos que fizemos juntos ao longo do caminho. Tudo o que construímos juntos até hoje, nossa relação, nossos sentimentos, nossa cumplicidade, amizade e parceria, não têm nada a ver com um registro em cartório; vai muito além disso. Porém, aproveitar a ocasião para celebrar nos fez realizar como é bonita a rede que tecemos juntos, também, de pessoas queridas, que se importam conosco. Mesmo as que não podiam estar presentes, fisicamente, se fizeram presentes na distância. Temos muita sorte.
Ontem, apresentamos a terceira edição do Entre Aspas: Palabras y delírios. Foi no Bodegón Club, em Sants – meu bairro favorito. Continuo processando tudo, mas fiquei muito feliz e satisfeito com nossa apresentação, com o espaço de acolhimento que construímos, L. e eu. Duas pessoas compartilharam seus textos pela primeira vez em público, e isso aconteceu no nosso Entre Aspas. Para mim, é sobre isso. Foi o ápice, depois de tantos ensaios, preparo, esmero. Não é (só) sobre o aplauso a cada poema/segmento, não é (só) sobre se sentir reconhecido nos olhares das pessoas depois que termina, é (também) sobre estabelecer esse ambiente de confiança, de afeto, em que as pessoas se sintam completamente à vontade para partilhar seus pensamentos, ânsias, frustrações, emoções, alegrias. Que noite bonita, a de ontem.
Passei muito tempo sem escrever aqui, sem fazer um texto sem pretensão. Estive muito focado no processo do Entre Aspas, muito ensimesmado com as questões da vida prática, que sempre me sequestram os momentos de contemplação, pagar contas, a Amazon, o que fazer da vida. A vida, sejamos francos, é muito frustrante, na maior parte do tempo. E custa muito, cada vez mais, abrir os olhos para a beleza. Momentos como meu casamento, a apresentação de ontem, o apagão, o ninho abandonado da perdiz, são as frestas no grande muro cinza do cotidiano, por onde podemos espiar e suspeitar que a vida se trata de algo mais. Juntos, entretanto, podemos nos apoiar, subir nos ombros uns dos outros, alternadamente, para espiar por cima do muro e respirar o aroma que sobe do imenso pasto que fica depois dele. Respire fundo comigo. E vamos em frente.
Alguma coisa aconteceu que não estava mais recebendo notificações de entrada de e-mails na minha caixa. Fiquei pensando "o que será que deve ter acontecido para will não escrever mais?!" Fiquei aliviada quando descobri a causa, sem e-mails tudo bem, mas sem sua escrita não.. porque como elemento vital ela me oxigena. Fico grata por essa escrita que tbm me envolve em sentimentos que compartilhamos. Grata pela escrita, pelos sentimentos e pela partilha. Te amo!
Essa partilha real com as pessoas, pássaros e seus ninhos, comemorações e conquistas fazem do quotidiano algo para se viver, ainda que a vida seja frustrante na maior parte do tempo, não precisamos ficar carregando nossas quotas de danos. Vamos em frente!