Um conto: Natal
Talvez meu conto favorito, publicado numa coletânea longínqua da Off-Flip
O dia veio trazer da Serra do Mar uma manta leve e inconsútil de neblina para cobrir de manhã o orvalho da madrugada. O ar frio e estático permitia à névoa se espreguiçar por sobre os arbustos espinhentos de coroas-de-cristo e contornar as venezianas brancas de madeira embutidas em paredes de tijolo vermelho na rua de construções quase iguais. Um suspiro de friagem se esgueirou para dentro da sala por baixo da porta da casa de número 15, e fez estremecer de leve o corpo adormecido sobre o sofá macio de veludo preto. Mãos sobrepostas ao lado do rosto emoldurado por cabelos em perfeita desordem, lábios esquecidos um do outro, tez pálida e semblante sereno.
Pontualmente às 5h47 da manhã o primeiro raio de sol se desprendeu do firmamento e vagou lentamente até trespassar sem ruído o véu branco da cortina de renda e se assentar com cautela sobre a pálpebra cerrada do olho esquerdo. Perturbada pela claridade, a pele fina se retraiu com um leve espasmo, revelando a íris opaca e a pupila displicentemente dilatada. Após o choque, o largo abismo escuro se estreitou o bastante para fitar as manchas de umidade no teto e mirar, em seguida, o lustre empoeirado, a moldura de gesso, o umbral de madeira escura da porta, a maçaneta dourada e o cão adormecido aos pés de um móvel, na ordem em que a gravidade os apresentou.
O nervo óptico transmitia tudo ao cérebro na maior velocidade possível, enquanto o córtex e o lobo temporal uniam esforços para registrar os detalhes do cenário e compará-los às memórias previamente armazenadas para compreender. Em vão. Nas memórias não havia gesso, nem lustre. Somente dispersos pontos brancos se espalhando no sem-fim do verde e se confundindo com outros, maiores, sobre o profundo azul; troncos fortes suportando o peso do corpo na busca pela fruta madura; a Maria-Fumaça cortando o quintal, fabricando nuvens; a casa de madeira simples; o chão de terra batida. Diante das manchas no teto, da porta, do cachorro e do móvel, não sabia onde estava. Entretanto o não saber vinha só, sem a companhia do desespero. Aliás: trazia consigo a excitação ante ao desconhecido. Resolveu saltar de uma vez do sofá e investigar o que pudesse solver o mistério. Ao tentar mover as pernas, estranhou a energia que era preciso despender para fazê-lo. Após vários exercícios de inspirar fundo e forçar os músculos enrijecidos, conseguiu se sentar, mas notou que faltaria força às pernas para se pôr de pé. Foi necessário recorrer ao auxílio dos braços para, não sem alguma dificuldade, içar o resto para fora do estofado. Tateou com os pés o chão para encontrar os chinelos de pano, azul desbotado sobre a ardósia fria, e deslizou sem som pela casa ainda semimergulhada na penumbra.
A cozinha não dava pistas do jantar: louça meticulosamente lavada, torneira reluzindo inox, uma gota preguiçosa teimando não cair na cuba vazia e reverberar o som indecoroso do impacto. Tão rápido quanto possível, aproximou-se da pia para impedir o sacrilégio. Quando tocou o registro, teve de parar um instante para contemplar a mão que pousara sobre a válvula: por qualquer razão, parecia estranha à vista, como pertencesse a outrem. Olhou em volta, buscando algo que lhe oferecesse, se não uma resposta, qualquer pergunta mais simples. A geladeira marrom de duas portas permaneceu impassível, ronronando baixinho para acalentar no frio os alimentos. O armário de ferro se fechou, sólido e silencioso. O padrão do azulejo na parede oposta, no entanto, parecia sussurrar convidativo, apontando o corredor à direita. Girou o punho com a força que tinha e viu a gota teimosa recuar para o abrigo curvo da torneira. Com uma interjeição muda de satisfação e um breve aceno de cabeça, deu as costas para o mármore escuro da pia e arrastou os chinelos de volta, na direção da parede azulejada.
O volume do corpo cortando o ar causava tanto estranhamento quanto todo o resto. A respiração lenta, quase surda, tragando imensas golfadas de oxigênio por vez, não era suficiente para irrigar os membros de sangue fresco que desse vigor aos músculos. Tocou com a mão estrangeira o azulejo e deixou a ponta do dedo afundar no rejunte entre um e outro. A aspereza do cimento era quase imperceptível à ponta do indicador. A pele mal contrastava contra a parede, não fossem as pintas disformes – respingos de tinta marrom, constelações de raspas de chocolate –, e as grossas veias verdes e azuis. Deixou a cerâmica fria guiar seus passos até o final do corredor, quando chegou a uma encruzilhada de portas, uma de madeira simples, à frente, e outra, sanfonada branca, à direita. Decidiu automaticamente pela segunda opção, como se alguma memória muscular a levasse através de um caminho percorrido muitas vezes.
Foi entrando, desconfiada, até que se deu conta de que estava em um banheiro simples. O box do chuveiro era de acrílico marrom, com formas que a imaginação completava. Junto à latrina, outro ornamento semelhante, também de porcelana, com dois registros sobre a base. Tudo era branco e recendia a desinfetante de pinho. Em meio à inspeção, sentiu a boca secar e o coração disparar dentro do peito frágil: uma velha a observava, atônita, através de uma moldura de plástico marrom. Piscou os olhos para desfazer o mesmerismo, mas a outra mimetizou seus movimentos com uma perfeição que ficava no ponto exato entre o terror e o alumbramento. Aproximou-se da moldura, e a velha fez o mesmo. As pontas dos narizes estavam prestes a se tocar quando uma cortina de vapor escondeu a misteriosa aparição. Afastou o rosto rapidamente e ponderou um instante. Do lado de lá, também. Procurando evitar qualquer sombra que a denunciasse, contorceu bruscamente os cantos da boca com o auxílio dos indicadores, esticou a língua para fora e estreitou os olhos. Nenhuma surpresa ao notar que a velha fazia igual. Deixou o rosto voltar à normalidade, os braços soltos ao lado do corpo, e inspirou fundo, sempre acompanhada pela aparição. Não sentiu medo, fora o susto inicial. Averiguou com atenção o rosto que a observava de forma reciprocamente curiosa. Não era uma velha feia. Que a vida não fora gentil com ela, era notório. Ainda assim, de todos os sulcos que trazia na pele murcha, as marcas do riso eram as que mais saltavam à vista. Em contrapartida, os olhos eram cansados e melancólicos. De onde viera? O que sucedera a ela? Não parecia com alguém de que se lembrava, de um sonho distante? Aos poucos a verdade foi se construindo diante dos olhos. A velha ia parecendo cada vez mais esclarecida e menos confusa do outro lado. Levou uma das mãos ao rosto e sentiu a pele flácida da bochecha fria, papel machê com excesso de umidade. Acariciou como quem deseja expulsar os pelos grossos da sobrancelha, os cabelos brancos desgrenhados, as verrugas marrons espalhadas pelo rosto. Por fim, numa última tentativa de provar a si mesma que a bruxa à sua frente a enganara com algum truque barato, sorriu. Na face que o espelho refletia, um rasgo se abriu, deixando ver o vácuo negro de uma boca já sem dentes. Era a si mesma que contemplava.
No entanto, custava a crer no que via. Por dentro o coração quente se mostrava ainda o mesmo da meninice, dos vestidos brancos e azuis da fazenda, da única boneca órfã de papelão, do cheiro de estábulo, fogueiras, sanfonas e pirilampos na penumbra. Considerou por mais um instante o reflexo e soube o que fazer. As grossas unhas que o tempo lhe dera de presente fizeram um talho acima do supercílio direito. Fechou os olhos para conter a dor e puxou com força a pele mole e quebradiça. Quando tornou a ver, divertiu-se ao notar que o tecido se desprendera indolor, e sem rastro de sangue. Sob a camada grossa da derme enrugada, era possível divisar um tom róseo e saudável. Mais dois ou três talhos e a pele da cara era novamente como se lembrava. Em seguida foi a vez do pescoço, dos ombros, braços, e então dos seios, barriga, ventre, pernas. Cada vez mais e mais retalhos, fragmentos de cascas secas, foram se amontoando no porcelanato frio do banheiro. Em pouco tempo, todo o corpo estava morno e liso outra vez. Deixou para o final o couro cabeludo. Como as mãos já não traziam mais as unhas grossas, abriu o armário e fez uso de pinça e tesoura para dar conta dos pelos e cabelos. Terminado o serviço, lavou o rosto na pia e olhou outra vez no espelho. A imagem lhe era agora muito mais familiar. Exceto pelos olhos, que se mantinham opacos e sem vida. Com perícia, enfiou a cabeça dentro da bacia de louça, com a face voltada para o teto, fitando a abertura da torneira, e abriu o registro. A pressão da água lavou os olhos e formou poças pelo chão ao redor. Enxugou-se numa toalha macia que pendia da parede e avaliou o resultado: era a mesma menina que o coração segredara.
Tapou a boca com as duas mãos ao perceber a bagunça que fizera. Mamãe havia de ficar uma onça. Saiu do banheiro asinha, pé ante pé, e fechou a porta de correr como Santa Virgem poria o nenê divino no berço de palha do presépio. Passou pela cozinha voando qual bailarina e voltou no último instante para apanhar um copo de água do filtro de barro: tinha muita sede. As vontades que tinha eram muito mais compatíveis com o corpo recuperado. Rodopiou em frente a pia, largando o copo pela metade, e disparou na direção da sala. Ao chegar à porta, prendeu a respiração e fez silêncio. Uma velhinha dormia no sofá. Aproximou-se, lenta e cautelosamente. Afagou os cabelos brancos de palha e sentiu um aperto no peito, sem saber por quê. Olhar para ela dava uma saudade e um alívio ao mesmo tempo. Talvez fosse sua avó, mas não sabia dizer ao certo. Estalou um beijo mudo na fronte gélida e amarrotada, e sorriu tristemente. Deu as costas ao corpo adormecido e fez festa no cachorro deitado aos pés do móvel. O vira-lata se agitou um tanto, mas sem despertar. Pulou a janela de venezianas brancas, desvencilhou o vestidinho de renda do arbusto espinhento e desceu a rua que dava para o bosque. Já de longe podia ver todos seus amigos, acenando contentes à espera. Era abril.
[9/12/2016]
Sinto falta de escrever contos. O último que comecei me observa, inacabado, da outra aba aberta no navegador. Já tem vinte páginas e não sei quando acaba. Gostava de escrever contos de um fôlego, e depois mexer muito neles. Agora, só posso escrever de quando em quando, de pouco em pouco, e aí ficam grandes demais pra ficar mexendo. Nada, constatações de uma manhã de domingo (de ressaca).
Se você leu o conto todo, eu lembro que pode responder a este email pra me mandar um oi. Não precisa pensar muito, nem dizer nada bonito, pode ser só o oi, mesmo.
Até breve,
Oi Will (primeira resposta ao seu pedido final)
O conto nem tão antigo, apesar de estar próximo de completar a primeira década, me trouxe um um eco familiar da transitoriedade que, por vezes, me assombra ao pensar em 7 décadas.
A imagem da personagem que se despe de sua persona envelhecida para reencontrar a menina de outrora é uma metáfora pontifiada durante a busca sem frim pela essência (que reside em nós).
Gostaria de, como a sua personagem, ter a coragem de me despojar do efêmero - dias, consumo, boletos, planos, peles, ossos, certezas - e reencontrar a pureza original que reside em nossos corações.
Continuo buscando não apenas o que somos como humanidade, mas o que podemos ser. Que sejamos viajantes girando pelo mundo.