Oi!
Uma coisa sobre mim: eu amo teatro. Às vezes eu esqueço o quanto eu realmente gosto do teatro. De ir ao teatro, do espaço físico teatro, de estudar teatro, fazer teatro. Tive algumas experiências com atuação, e é algo que me move muito. Vivendo fora, trabalhando com escalas malucas, infelizmente, fica difícil exercitar esse lado. Por outro lado, há muitas e muitas peças em cartaz em minha cidade e em Barcelona. Quero me organizar para ser um frequentador mais assíduo.
Dito isso, eu nunca escrevi teatro. Bom, nas vezes em que estudei como ator, ajudei a construir o texto de forma coletiva, e na época da igreja eu cheguei a redigir uma peça que nunca foi apresentada. Fora essas experiências, eu nunca escrevi nada pro teatro. Ou pelo menos nunca publiquei. Até agora (tcharan!).
A peça, que eu deixo a seguir, começou a ser escrita em 2022. Em 2023 eu adicionei alguma coisa. E hoje eu resolvi terminar. Li algo esses dias sobre a procrastinação, e sobre como muitas vezes a gente adia tarefas por medo de não ser bem-sucedido nelas. Minhas expectativas sempre são enormes quando escrevo algo. Por isso demoro tanto, acho. Enfim, resolvi terminar essa primeira versão e compartilhar aqui. Quem sabe alguém não se anima a dirigir o texto? Ou quem sabe não é tão ruim quanto eu pense, nem tão bom quanto eu quero acreditar, e seja simplesmente algo que eu fiz com carinho. Bom, se você ler até o fim, me conta o que achou. Boa leitura.
Palco escuro. Som de botão de temporizador sendo girado (o crec característico). Luz acende. Um foco no centro do palco, que clareia a meia-luz os cantos, onde vão ficar os personagens. No centro do palco, PERSONAGEM 1 acaba de girar o botão. Ele se aproxima pra conferir o tempo no timer. PERSONAGEM 2 está à direita do espectador, sentado num banquinho. PERSONAGEM 2: - Quanto tempo? PERSONAGEM 1 (ainda com a cara colada no mecanismo): - 15 minutos. PERSONAGEM 2: - Mas só isso? PERSONAGEM 1: - ‘Tá enguiçado. Ou é isso, ou meia hora. PERSONAGEM 2: - Colocasse meia hora, então. PERSONAGEM 1: - Daí você ia reclamar que ‘tá entediado. Vai, passa pra cá. PERSONAGEM 2, de má vontade, levanta-se, pega o banquinho, caminha até o meio do palco onde está o PERSONAGEM 1, entrega o banquinho para o PERSONAGEM 1. PERSONAGEM 1 caminha até o lado esquerdo do palco (vista do espectador), acomoda o banquinho metodicamente, senta-se com um suspiro. PERSONAGEM 2 se espreguiça, alonga as pernas, depois fica contemplando as próprias unhas. Após um breve momento, PERSONAGEM 1 vira-se para ele. PERSONAGEM 1: - Bom, e aí? PERSONAGEM 2: - Aqui, nada, e aí? PERSONAGEM 1: - Idiota. É sua vez, né? PERSONAGEM 2: - Ah. Deixa ver. Te contei a do macaquinho? PERSONAGEM 1: - Não, nem vem com essa de macaquinho. Até quando ‘cê vai contar piada? PERSONAGEM 2: - É que eu sei muitas. E se eu tenho que contar alguma coisa, que seja piada, ué. ‘Cê quer que eu conte o quê? PERSONAGEM 1: - Sei lá. Para de me enrolar, o tempo ‘tá passando. Conta logo alguma coisa que preste. PERSONAGEM 2: - ‘Tá. Quando eu tinha 7 anos… PERSONAGEM 1: - Ah, não… PERSONAGEM 2: - O quê? PERSONAGEM 1: - Nada, nada. Manda ver. PERSONAGEM 2: - Aí, ó, depois cê reclama. PERSONAGEM 1: - Não tô reclamando. PERSONAGEM 2: - Não, não… imagina. PERSONAGEM 1: - É que quando começa assim, “quando eu tinha 8 anos”, já sei que vem história triste. Tragédia. Um tio não sei o quê, a prima que não sei o que lá. PERSONAGEM 2: - Primeiro que eram 7 anos. E não tem tio nem prima nessa história. PERSONAGEM 1: - Então tem avô. PERSONAGEM 2: - Não, errou de novo. PERSONAGEM 1: - OK. Mas algum trauma, com certeza, tem. PERSONAGEM 2: - Você vai me deixar contar ou não? PERSONAGEM 1 dá de ombros. Enquanto PERSONAGEM 2 fala, PERSONAGEM 1 se distrai contando os botões da camisa, as ranhuras na sola do sapato, olhando para o teto, etc. PERSONAGEM 2: - Então. Quando eu tinha 8 anos, ia sempre a pé para a escola. Naquele tempo dava de ir assim, sem ninguém acompanhando, a escola era perto. E eu tinha mania, tenho até hoje, na verdade, de pegar coisas na rua, do chão. Qualquer tralha, assim, folha seca, pedra, pena de pombo, às vezes um pedacinho de paina perdido no vento. E papel. Principalmente papel. Adorava achar uma folha de caderno perdida. Ia logo lendo o que ‘tava escrito, na esperança de descobrir assim um segredo. Sabe como é? PERSONAGEM 1 segue ignorando. PERSONAGEM 2 continua a história. PERSONAGEM 2: - Daí nesse dia eu tinha chegado mais cedo na escola. Ficava sempre ali perto do portão, esperando a hora de entrar. E tinha um jardim na frente da escola. Eu fui andar por ali, catar uns galhos, talvez alguma pinha, se eu tivesse sorte. Foi quando eu vi uma folha de caderno. ‘Tava dobradinha em quatro partes, um quadradinho quase perfeito. Quer dizer, não foi só uma folha que caiu do meio de um fichário. Era algo que alguém tinha escrito, arrancado a página e dobrado pra entregar pra outra pessoa. Ou talvez pra guardar numa carteira. Num estojo. Sei lá. Eu olhei pros lados pra ver se não tinha ninguém por perto, vai ver o dono ou dona ainda estivesse por ali. Não tinha ninguém que parecesse ter perdido alguma coisa. Então eu desdobrei aquela carta, e vi que ‘tava escrita, assim, numa letra de mão caprichadinha, grande, bem fácil de ler. E eu nunca vou esquecer o que eu li naquele dia. PERSONAGEM 2 fica pensativo. PERSONAGEM 1 nota o silêncio, vira-se para PERSONAGEM 2, observa-o perder-se em seus pensamentos. Luz apaga. Alguns segundos se passam. Luz acende. PERSONAGEM 1 no centro do palco, mexendo no dispositivo. PERSONAGEM 2: - Mas já? PERSONAGEM 1: - Você quem botou 15 minutos. Boto outros 15? PERSONAGEM 2: - É o jeito, né? PERSONAGEM 1: - Alguém devia consertar isso. PERSONAGEM 2 (levando o banquinho até o centro): - Alguém devia. PERSONAGEM 2 entrega o banquinho para o PERSONAGEM 1. PERSONAGEM 2 caminha até o lado direito do palco (vista do espectador), acomoda o banquinho metodicamente, senta-se com um suspiro. PERSONAGEM 1: - E aí? PERSONAGEM 2, aliviado por estar sentado, observa seu entorno, então se dá conta que o outro fala com ele: PERSONAGEM 2: - Aqui, nada, e aí? PERSONAGEM 1: - Não, pô. O que você leu? PERSONAGEM 2: - Onde? PERSONAGEM 1: - No papel! PERSONAGEM 2: - Quando? PERSONAGEM 1: - Quando você tinha 8 anos, no jardim em frente à escola… PERSONAGEM 2: Ah, isso. Eram 7 anos. PERSONAGEM 1: - É, isso. PERSONAGEM 2 (pensa por um momento): - Ah, não, agora é sua vez. PERSONAGEM 2 dá um jeito de reclinar no banquinho, descansando. PERSONAGEM 1, contrariado: PERSONAGEM 1: - ‘Tá… OK. Mas depois ‘cê continua, não vai me enrolar… PERSONAGEM 2 parece cochilar. PERSONAGEM 1: Adoro falar quando você presta atenção. PERSONAGEM 2 não reage. PERSONAGEM 1 se resigna. PERSONAGEM 1: Tudo bem. Tem trabalhos piores. Quando eu entrei pro exército, ah, aquilo, sim, era vida dura. Passar a noite de campana em cima duma torre, aquele vento gelado da madrugada. Uma garrafa de café era pouco, pra mim. Pra outros, dois pinos de pó não duravam a primeira metade da noite. Isso mexe com a cabeça da gente, sabe? PERSONAGEM 2 (cantarolando): Somos do exército do surf… PERSONAGEM 1: Pois é. Mas sempre tem um mais maluco que os outros. Tinha um lá, todo marrentinho, da língua presa, só falava bosta. Não fazia nada direito. Tinha que ver ele fazendo flexão, sabe? Só com o pescoço, assim. E se achava. Chegava a dar dó. Era doido pra estourar uma guerra. Mas eram outros tempos, ninguém mais queria, não tinha motivo. Sabe o que ele falou pra gente, uma noite, entre o terceiro e o quarto pino? PERSONAGEM 2 (cantarolando): Mandado foi ao Vietnã… PERSONAGEM 1: “Eu vou arranjar um motivo”, foi o que ele falou. Duas semanas, o carro de um general explodiu no centro. O general não ‘tava no carro. Em menos de um mês, o língua presa tava fora do exército. Nem eles quiseram o cara lá. E olha que lá só tem doido. Daí ele sumiu um tempo, esse aí. Uma vida depois eu reconheci ele na TV. Tava igualzinho. E ainda falando de guerra civil. É impressionante o quanto essa gente vai longe. Daqui a pouco é capaz que vire, Deus o livre, presidente. Luz apaga. Luz acende. Se repete o jogo com o banquinho, PERSONAGEM 2 mexendo no mecanismo, volta a seu lugar marchando. PERSONAGEM 1 volta apressado ao seu lugar, senta-se no banquinho e fala: PERSONAGEM 1: ‘Tá, e aí? PERSONAGEM 2 segue seu caminho, ainda marchando. PERSONAGEM 1: Anda logo, cara! PERSONAGEM 2 chega ao seu lugar e bate uma continência para o público. PERSONAGEM 1 (impaciente): E aí? PERSONAGEM 2: Aqui, nada. E aí? PERSONAGEM 1: Ah, vá… PERSONAGEM 2: Você já fez terapia? PERSONAGEM 1: Acha que eu devia? PERSONAGEM 2: Sei lá. Mas tu é meio impaciente demais, né não? PERSONAGEM 1: Não, sou justo. Quando é minha vez de falar eu não fico enrolando. PERSONAGEM 2: Eu enrolo, né? PERSONAGEM 1: ‘Tá enrolando bem agora. PERSONAGEM 2: Pois é… Minha analista falava muito isso, sabe? Que eu era reticente, demorava muito pra começar a falar de verdade. E que terminava muitas frases com interrogações. Pra obrigar o outro a validar tudo o que eu falo, entende? PERSONAGEM 1: Entendo bem. E o que mais ela dizia? PERSONAGEM 2: Teve uma época em que a gente foi obrigado a se trancar em casa, lembra? Todo mundo. Quer dizer, obrigado, não, né. E nem todo mundo, também. É engraçado como as palavras que a gente usa muitas vezes não dão conta de contar as coisas. ‘Tá vendo? É tipo isso: nem é engraçado, e eu falei que é engraçado. PERSONAGEM 1 (muito intrigado): Sim, é verdade. Curioso, mesmo. PERSONAGEM 2 (exclama): Exato! “Curioso” é a palavra. Eu já fui muito curioso quando era criança. Acho que a gente vai perdendo isso. Mas eu ‘tava dizendo de quando a gente se obrigou a se trancar em casa, quem podia, pra evitar espalhar aquela doença, que até hoje não se sabe bem se existia, se matava… PERSONAGEM 1 (exaltado): Quê?! Endoidou? Matou, sim, e matou muito! PERSONAGEM 2: Essa é sua opinião. PERSONAGEM 1: Você não sabe diferenciar um fato de uma opinião? PERSONAGEM 2: Não. Isso é fato. Ou opinião? PERSONAGEM 1, exasperade, deixa cair os ombros, esfrega os olhos, dá sinais de impaciência e resignação. PERSONAGEM 2: Enfim. Nessa época aí, sabe? Eu sonhava muita coisa. Muita coisa maluca. Sem pé nem cabeça, mesmo? Sonhava que saía de casa e chegava sem máscara nos lugares. Igual quando era criança e sonhava que ia pra escola sem calça, ‘cê já sonhou isso? Mas no sonho da infância, riam de mim. No da época do isolamento, tinham medo. Não só isso, eu sonhava que era bicho: sonhei que era gato, algumas vezes. Macaco, uma outra, acredita? Ainda que frustrado, PERSONAGEM 1 volta a dar atenção ao relato, como se fosse impossível não prestar. PERSONAGEM 2: Daí li um livro igualzinho isso, de um cara que sonhava com um gato e ia pra análise, e a analista dizia que o gato do sonho era ele mesmo. Contei pra minha analista. Dos sonhos e do livro. Contei de um monte de coisa, também. que não vem ao caso. Daí eu perguntei se o gato do meu sonho era eu… PERSONAGEM 1: … e ela? PERSONAGEM 2: Ela disse que todo mundo que aparece no sonho é você. Silêncio. PERSONAGEM 1: Eu? PERSONAGEM 2: Você. PERSONAGEM 1: Nossa… PERSONAGEM 2: Incrível, né? PERSONAGEM 1: Demais. Não sabia que você pensava tanto em mim assim. Luz apaga. Luz acende. Ambos personagens estão no centro do palco, segurando cada um dois pés do banquinho bem junto ao rosto, como se tivessem o rosto apoiado nas grades de uma cela. Segue-se um jogo elaborado em que cada um tenta livrar-se do banquinho e ficar com ele ao mesmo tempo. Empurram, puxam, para cima e para baixo, sempre no centro do palco. O jogo termina com os dois deitados no chão, com o rosto para baixo, as mãos firmes agarradas nos pés do banquinho que se impõe, vazio, entre os dois. Luz apaga. Luz acende. No centro do palco, PERSONAGEM 1, sentado com as pernas esticadas para o seu lado do palco com as costas apoiadas nos pés do banquinho. PERSONAGEM 2 espelhando a mesma pose. Seguem espelhando os movimentos um do outro, sem se olharem, ao longo desta sequência. PERSONAGEM 1 (como se falasse sozinho, resmungando pra si mesmo): Agora a luz deu pra piscar. PERSONAGEM 2: Tem coisa que pisca pra dar. PERSONAGEM 1 (segue resmungando): Bem que eu devia ter aceitado aquele emprego. Mas, não. Estabilidade, eles disseram. PERSONAGEM 2: Quem disse? PERSONAGEM 1 (ainda resmungando): E a única coisa que se pode fazer neste trabalho é conversar. Aí me colocam no turno desse aí. PERSONAGEM 2: Magoou. PERSONAGEM 1 (para os céus, jogando os braços para cima e os deixando cair para trás): Eu só queria sentir! No movimento espelhado, as mãos de ambos personagens se tocam. Se separam rapidamente, como se levassem um choque, e ao longo do texto vão tateando pouco a pouco a procura da outra. PERSONAGEM 2: “Quando duas pessoas olham por uma janela…” PERSONAGEM 1: Lá vem besteira… PERSONAGEM 2: Shh! “Quando duas pessoas olham por uma janela…” PERSONAGEM 1: Não faz “shh” pra mim, que eu não gosto. PERSONAGEM 2: Então não me interrompe! PERSONAGEM 1: Tá bom, desculpa. PERSONAGEM 2 (inspira fundo, se prepara, fecha os olhos, inspira e): “Quando duas pessoas olham por uma janela…” PERSONAGEM 1: Mas isso você já disse. PERSONAGEM 2: Você não queria saber o que dizia o tal do bilhete? PERSONAGEM 1: Por que não falou logo que era isso? PERSONAGEM 2: Vai prestar atenção, agora? PERSONAGEM 1: Eu prometo. PERSONAGEM 2: Jura? PERSONAGEM 1: Eu não juro. Mas posso jurar. PERSONAGEM 2: Você jura ou não? PERSONAGEM 1: Eu juro. Nessa hora, as mãos se encontram. Os dedos se entrelaçam. PERSONAGEM 2: “Quando duas pessoas olham por uma janela…” Luz apaga. Luz acende. O banquinho foi jogado para o canto direito do cenário. Ambos personagens, no outro extremo, se abraçam, acariciam, se namoram, se curtem, se beijam, se entregam. Depois, brincando, correm ao centro do palco e começam a girar, se segurando pelas mãos: PERSONAGEM 2: Então você jura? PERSONAGEM 1: Eu não juro. Mas por você eu posso jurar. PERSONAGEM 2: No sonho da infância, riam de mim. PERSONAGEM 1: Quando eu entrei pro exército, ah, aquilo, sim, era vida dura. PERSONAGEM 2: Mandado foi ao Vietnã… PERSONAGEM 1: E ela? PERSONAGEM 2: Ela disse que todo mundo que aparece no sonho é você. PERSONAGEM 1: Eu? PERSONAGEM 2: Você. O eu-você-eu se repete até que ambos se desprendem, cada um cai exausto para o seu lado do palco. Aqui joga o acaso. Não importa qual dos dois cai para que lado, um é o outro e vice-versa se preciso. O personagem que cai do lado do palco onde está o banquinho se levanta, pega o banquinho, caminha calmamente até o centro do palco. Sobe no banquinho, toma seu tempo, respira fundo e diz: PERSONAGEM 1/2: “Quando duas pessoas olham por uma janela, são duas paisagens o que veem. E uma terceira, que as observa.” Silêncio. PERSONAGEM 2/1: E aí? PERSONAGEM 1/2 (reflete um momento, depois ri): Aqui, nada. E aí? Luz apaga.
Por hoje é só.
Até breve!